segunda-feira, outubro 3

BICHOS


*JAIME SPITZCOVSKY 
O mouse, o cão e o dragão chinês


É inevitável que maus-tratos aos animais diminuam num país onde a lei e a democracia têm mais espaço


Não resta dúvida de que o Partido Comunista chinês desistiu de seguir o chamado de Karl Marx para unir os proletários e jogar os capitalistas na lata de lixo da história.
A alquimia pequinesa dos dias atuais combina ingredientes de economia de mercado, dirigismo estatal e consumismo irrefreável, amalgamados com um impenetrável monopólio do poder nas mãos da elite dominante. Mas desafios começam a intensificar essa lógica implantada nas últimas três décadas, com uma embrionária sociedade civil mostrando suas garras e usando a internet, por exemplo, para arrancar a defesa dos direitos dos animais.
No mês passado, autoridades da cidade de Jinhua, na região leste do país, anunciaram o cancelamento de uma tradição com cerca de seis séculos, o festival de carne de cachorro, marcado para o próximo dia 18. A proibição foi anunciada depois de uma campanha capilarizada pelo Sina Weibo, espécie de Twitter chinês, com ampla divulgação de fotos e relatos de maus-tratos contra os animais.
Celebridades chinesas embarcaram na mobilização. Jornais chineses, sempre vigiados pela mão forte do controle estatal, dedicaram editoriais para criticar a feira. Em menos de um mês, a campanha ganhou corpo, e as autoridades do distrito de Wucheng, palco do evento, recorreram ao Sina Weibo para anunciar a desistência. A decisão, sustentaram eles, veio em "completo respeito à opinião pública".
Tradicionalistas contra-atacaram. Resgataram, em vários comentários, a origem da feira. Segundo o folclore local, estaria ligada à decisão de Hu Dahai, líder rebelde em sublevação contra a dinastia Yuan no século 14, de ordenar a matança dos cães de Jinhua para evitar que latidos revelassem a aproximação das suas tropas. A carne canina teria servido de alimento aos combatentes, gastronomia perpetuada pela tradição do evento anual.
Alguns pontos importantes do debate: vários ativistas não questionavam o consumo da carne canina, mas os maus-tratos a que eram submetidos os animais. Relatos apavoradores e repugnantes. Outros questionavam o próprio uso dos ensopados à base de ingredientes oriundos dos nossos amigos de quatro patas.
O episódio de Jinhua escancara as contradições que desafiam o Partido Comunista chinês. Nos tempos de Mao Tse-tung, manter um animal de estimação correspondia a um abominável e decadente hábito burguês. Hoje, o país experimenta uma explosão do mundo pet, com as novas classes médias e os recém-formados milionários ostentando cães como símbolo de status.
Também auscultar a opinião pública não consta do ideário predileto do governo em Pequim, que insiste com tentativas de controlar o mundo digital, no qual navegam nada menos do que 500 milhões de chineses. Para mim, que morei em Pequim entre 1994 e 1997, o aumento do peso da sociedade civil chinesa desponta como um movimento absolutamente incontrolável. Assim como é inevitável que maus-tratos aos animais diminuam num país onde a lei e a democracia encontrem mais espaço.


*Fonte: Folha de São Paulo

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