sábado, junho 30

Uma linda história de amor aos animais



*Por Cora Rónai  

Como essas são coisas que acontecem sempre, e muito, na sua vida, ela é uma mulher feliz. Aos 61 anos, já passou da fase de se preocupar com o que os outros pensam, atitude essencial para quem cuida de bichos e, por conseguinte, sofre com toda a espécie de preconceitos.
- No mínimo, acham que você é maluca - diz, caindo na risada; mas logo depois fica séria. - A nossa sociedade ainda discrimina muito os animais e, por tabela, quem cuida deles. Uma coisa que ouço com frequência irritante é gente perguntando por que não cuido de crianças carentes. Cuido também, abro muitas horas no consultório para atendimento gratuito, mas isso nem vem ao caso. O fato é que os animais também precisam de alguém que olhe por eles. A minha resposta padrão para essas pessoas, que tipicamente não fazem nada por ninguém, nem gente nem bicho, é: "Ah, que bom, você tem uma ONG que cuida de crianças? Eu adoraria conhecer o seu trabalho!"
Lilian, uma taurina típica que nasceu e cresceu em Uberlândia, e que sempre conviveu com bichos, acostumou-se desde cedo a tomar seus próprios rumos. Filha de família tradicional, educada para ser uma moça prendada, teve muitas aulas de bordado e de corte e costura até descobrir a paixão pela odontologia.
- Foi inteiramente acidental - lembra. - Eu sempre adorei arte, tinha uma queda por desenho, queria fazer escultura. Um dia marquei um encontro com um amigo que era filho de dentista no consultório do pai dele, onde vi um trabalho de prótese que o pai estava fazendo. Fiquei apaixonada: aquela microescultura era um sonho! Ali descobri a minha vocação. Meu pai ficou indignado quando cheguei em casa dizendo que queria ser dentista, "profissão de sustentar marido" na opinião dele. Uma moça de bem era professora ou fazia letras, e olhe lá. Bati o pé. E bati mais forte ainda quando, logo depois de concluir a faculdade, avisei que vinha para o Rio, para fazer um curso de especialização.
Chegou à cidade com 23 anos, o curso de especialização começou e acabou e ela foi ficando. Uberlândia virou uma foto na parede. Passou a dedicar-se exclusivamente a crianças, desafio que até hoje a seduz. É apaixonada por seus clientes, e plenamente correspondida. Os poucos adultos de quem trata são ex-crianças que frequentam seu consultório desde pequenas, como a atriz Debora Bloch.
- Tive muita sorte. Comecei a trabalhar num momento em que a odontologia estava se desenvolvendo a uma velocidade inacreditável, descobrindo a prevenção e materiais cada vez melhores. Hoje a gente começa a tratar as crianças assim que nascem seus primeiros dentinhos, quando ainda são bebês. Quando eu era jovem, era comum que os próprios dentistas dessem balas para as crianças, como prêmio de bom comportamento. Quem me despertou para a prevenção foi o doutor Olympio Faissol, com quem fui trabalhar assim que terminei os estudos.
A vida no Rio não era um mar de rosas. A jovem dentista morria de saudades: a família em Minas era uma festa permanente, os quatro irmãos sempre rodeados de amigos, mesas de almoço e jantar com não menos do que dez pessoas, muita cantoria, muitas serenatas. Felizmente havia a companhia dos bichos, que nunca permitiram que se sentisse sozinha. Ao contrário, com o passar do tempo eles foram se tornando presenças cada vez mais constantes - e numerosas - na sua vida. Incapaz de passar por um animal abandonado e deixá-lo largado, quando viu estava com 15 gatos em casa, e com uma briga e tanto com a vizinhança.
- Eu não entendo certas pessoas - desabafa. - Elas convivem com marteladas de obra, com música alta, com helicóptero, com carro de bombeiro passando na rua, com buzina, com criança chorando, com vizinho brigando. Mas vá um cachorro latir ou um gato miar! O mundo vem abaixo.
Lilian comprou um apartamento maior "para diluir os gatos", mas, no dia da mudança, viu que estava trocando seis por meia dúzia. Ao descer do carro na porta da nova casa, esbarrou numa moradora de rua que passava com um carrinho de supermercado carregando uns 30 gatos. Logo estava cuidando deles e, de quebra, da moradora de rua, que tinha câncer. Depois disso, o fluxo de animais abandonados que cruzaram o seu caminho não parou mais. Os mais precisados de atenção acabavam na sua casa, que funcionava (e funciona até hoje) como lar temporário, até que novos donos sejam encontrados. O apartamento é amplo, bonito, com uma luz maravilhosa. A decoração é minimalista, e os estofados sofrem: quem convive com gatos sabe que eles adoram interferir no ambiente, e têm um fraco por franjas e rendas.
- A minha mãe fica muito estressada quando vem ao Rio. Ela me diz: "Você podia ter uma casa tão bem arrumada!" Eu respondo que, enquanto a maior parte das pessoas optou por objetos, eu optei por vidas.
Logo ela descobriu que no Morro do Pasmado, ao lado da sua casa, havia uma quantidade de gatos abandonados, todos vivendo em péssimas condições. Passou a cuidar deles, alimentando, recolhendo os filhotes e encaminhando para adoção, castrando os adultos, dando vermífugos e remédios eventualmente necessários. Trabalho demais para uma pessoa só: foi uma época de crise no consultório, onde acabava se atrasando e onde chegou a perder clientes por causa disso.
Era preciso tomar uma providência. Paciente e determinada, Lilian estudou a situação e acabou chegando à conclusão de que a melhor forma de ajudar os bichos seria criando uma ONG. Assim nasceu a Oito Vidas, cujo nome vem das tradicionais sete vidas dos gatos, mais aquela que ganham quando são adotados.
Hoje já se sabe que não adianta recolher os animais a abrigos - diz Lilian, que adotou o protocolo da Feral Cat Coalition de San Diego, na Califórnia, instituição que tem tido sucesso notável no trato de animais abandonados. - Gatos vivem em colônias, e se uma colônia é removida, aquele espaço logo é preenchido por outros gatos. A primeira reação das pessoas que não sabem do que estão falando, diante de uma colônia de gatos, é que é preciso levá-los embora. Mas levar para onde? Não há lugar para onde se possa levá-los aqui no Rio. A Suipa está superlotada, e o CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) é um campo de extermínio. "Leva para um sítio": outra péssima ideia, porque nas áreas rurais do estado existe uma quantidade de felinos selvagens que podem ser contaminados por alguma doença trazida pelos gatos da cidade. A melhor forma de se lidar com os animais abandonados é controlando a população das colônias, dando alimentação, garantindo que todos sejam castrados e tratados se ficam doentes. Idealmente, é um trabalho feito em conjunto com os protetores locais e com o governo, que deve criar unidades móveis de castração e fazer campanhas educativas junto à população para prevenir o seu abandono. Aqui no Rio, porém, o governo é inteiramente omisso. A Secretaria de Proteção e Defesa dos Animais (Sepda) foi criada com boa intenção, mas virou um cabide de empregos onde sequer é necessário gostar de bicho para assumir um cargo.
Recentemente, a Oito Vidas entrou com um pedido de representação junto ao Ministério Público contra a Sepda, justamente, por causa do apoio da secretaria à ideia sinistra do Jockey Club de, mais uma vez, confinar os gatos da sua sede num gatil, espécie de campo de concentração de felinos. Cristina Palmer, vice-presidente da ONG, é advogada com larga experiência na área dos direitos dos animais.
A Oito Vidas (http://www.oitovidas.org.br/), que cuida de cerca de 800 gatos, hoje tem um ambulatório, por onde passam aqueles recolhidos para castração ou necessitados de cuidados médicos, e uma pequena equipe de funcionários e voluntários. Tem também um convênio com a Faculdade Hélio Alonso na área jurídica, graças ao advogado Marcelo Turrá, que oferece ajuda gratuita a quem enfrenta problemas na área, como ter algum animal envenenado por vizinho ou sofrer ameaças de despejo por ter bicho em casa. O governo, para variar, só faz atrapalhar.
- Imagina qual foi a exigência que me fizeram quando encontrei o depósito onde afinal fiz o ambulatório? Desratizar a área! Tem cabimento, por veneno num local cheio de gatos? Além disso, eu só queria saber que rato suicida ia se aventurar por lá.


*Fonte: Agência O Globo - Rio de Janeiro

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