*Por Cora Rónai
Como essas são coisas que acontecem sempre, e
muito, na sua vida, ela é uma mulher feliz. Aos 61 anos, já passou da fase de
se preocupar com o que os outros pensam, atitude essencial para quem cuida de
bichos e, por conseguinte, sofre com toda a espécie de preconceitos.
- No mínimo, acham que você é maluca - diz, caindo na risada; mas logo
depois fica séria. - A nossa sociedade ainda discrimina muito os animais e, por
tabela, quem cuida deles. Uma coisa que ouço com frequência irritante é gente
perguntando por que não cuido de crianças carentes. Cuido também, abro muitas
horas no consultório para atendimento gratuito, mas isso nem vem ao caso. O
fato é que os animais também precisam de alguém que olhe por eles. A minha
resposta padrão para essas pessoas, que tipicamente não fazem nada por ninguém,
nem gente nem bicho, é: "Ah, que bom, você tem uma ONG que cuida de
crianças? Eu adoraria conhecer o seu trabalho!"
Lilian, uma taurina típica que nasceu e cresceu em Uberlândia, e que
sempre conviveu com bichos, acostumou-se desde cedo a tomar seus próprios
rumos. Filha de família tradicional, educada para ser uma moça prendada, teve
muitas aulas de bordado e de corte e costura até descobrir a paixão pela
odontologia.
- Foi inteiramente acidental - lembra. - Eu sempre adorei arte, tinha
uma queda por desenho, queria fazer escultura. Um dia marquei um encontro com
um amigo que era filho de dentista no consultório do pai dele, onde vi um
trabalho de prótese que o pai estava fazendo. Fiquei apaixonada: aquela
microescultura era um sonho! Ali descobri a minha vocação. Meu pai ficou
indignado quando cheguei em casa dizendo que queria ser dentista,
"profissão de sustentar marido" na opinião dele. Uma moça de bem era
professora ou fazia letras, e olhe lá. Bati o pé. E bati mais forte ainda
quando, logo depois de concluir a faculdade, avisei que vinha para o Rio, para
fazer um curso de especialização.
Chegou à cidade com 23 anos, o curso de especialização começou e acabou
e ela foi ficando. Uberlândia virou uma foto na parede. Passou a dedicar-se
exclusivamente a crianças, desafio que até hoje a seduz. É apaixonada por seus
clientes, e plenamente correspondida. Os poucos adultos de quem trata são
ex-crianças que frequentam seu consultório desde pequenas, como a atriz Debora
Bloch.
- Tive muita sorte. Comecei a trabalhar num momento em que a odontologia
estava se desenvolvendo a uma velocidade inacreditável, descobrindo a prevenção
e materiais cada vez melhores. Hoje a gente começa a tratar as crianças assim
que nascem seus primeiros dentinhos, quando ainda são bebês. Quando eu era
jovem, era comum que os próprios dentistas dessem balas para as crianças, como
prêmio de bom comportamento. Quem me despertou para a prevenção foi o doutor
Olympio Faissol, com quem fui trabalhar assim que terminei os estudos.
A vida no Rio não era um mar de rosas. A jovem dentista morria de
saudades: a família em Minas era uma festa permanente, os quatro irmãos sempre
rodeados de amigos, mesas de almoço e jantar com não menos do que dez pessoas,
muita cantoria, muitas serenatas. Felizmente havia a companhia dos bichos, que
nunca permitiram que se sentisse sozinha. Ao contrário, com o passar do tempo
eles foram se tornando presenças cada vez mais constantes - e numerosas - na
sua vida. Incapaz de passar por um animal abandonado e deixá-lo largado, quando
viu estava com 15 gatos em casa, e com uma briga e tanto com a vizinhança.
- Eu não entendo certas pessoas - desabafa. - Elas convivem com
marteladas de obra, com música alta, com helicóptero, com carro de bombeiro
passando na rua, com buzina, com criança chorando, com vizinho brigando. Mas vá
um cachorro latir ou um gato miar! O mundo vem abaixo.
Lilian comprou um apartamento maior "para diluir os gatos",
mas, no dia da mudança, viu que estava trocando seis por meia dúzia. Ao descer
do carro na porta da nova casa, esbarrou numa moradora de rua que passava com
um carrinho de supermercado carregando uns 30 gatos. Logo estava cuidando deles
e, de quebra, da moradora de rua, que tinha câncer. Depois disso, o fluxo de
animais abandonados que cruzaram o seu caminho não parou mais. Os mais
precisados de atenção acabavam na sua casa, que funcionava (e funciona até
hoje) como lar temporário, até que novos donos sejam encontrados. O apartamento
é amplo, bonito, com uma luz maravilhosa. A decoração é minimalista, e os
estofados sofrem: quem convive com gatos sabe que eles adoram interferir no
ambiente, e têm um fraco por franjas e rendas.
- A minha mãe fica muito estressada quando vem ao Rio. Ela me diz:
"Você podia ter uma casa tão bem arrumada!" Eu respondo que, enquanto
a maior parte das pessoas optou por objetos, eu optei por vidas.
Logo ela descobriu que no Morro do Pasmado, ao lado da sua casa, havia
uma quantidade de gatos abandonados, todos vivendo em péssimas condições.
Passou a cuidar deles, alimentando, recolhendo os filhotes e encaminhando para
adoção, castrando os adultos, dando vermífugos e remédios eventualmente
necessários. Trabalho demais para uma pessoa só: foi uma época de crise no
consultório, onde acabava se atrasando e onde chegou a perder clientes por
causa disso.
Era preciso tomar uma providência. Paciente e determinada, Lilian
estudou a situação e acabou chegando à conclusão de que a melhor forma de
ajudar os bichos seria criando uma ONG. Assim nasceu a Oito Vidas, cujo nome vem das tradicionais
sete vidas dos gatos, mais aquela que ganham quando são adotados.
- Hoje já se sabe que não adianta recolher os animais a abrigos -
diz Lilian, que adotou o protocolo da Feral Cat Coalition de San Diego, na Califórnia,
instituição que tem tido sucesso notável no trato de animais abandonados. -
Gatos vivem em colônias, e se uma colônia é removida, aquele espaço logo é
preenchido por outros gatos. A primeira reação das pessoas que não sabem do
que estão falando, diante de uma colônia de gatos, é que é preciso levá-los
embora. Mas levar para onde? Não há lugar para onde se possa levá-los aqui no
Rio. A Suipa está superlotada, e o CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) é um
campo de extermínio. "Leva para um sítio": outra péssima ideia,
porque nas áreas rurais do estado existe uma quantidade de felinos selvagens
que podem ser contaminados por alguma doença trazida pelos gatos da cidade. A
melhor forma de se lidar com os animais abandonados é controlando a população das
colônias, dando alimentação, garantindo que todos sejam castrados e tratados se
ficam doentes. Idealmente, é um trabalho feito em conjunto com os
protetores locais e com o governo, que deve criar unidades móveis de castração
e fazer campanhas educativas junto à população para prevenir o seu abandono.
Aqui no Rio, porém, o governo é inteiramente omisso. A Secretaria de Proteção e
Defesa dos Animais (Sepda) foi criada com boa intenção, mas virou um cabide de
empregos onde sequer é necessário gostar de bicho para assumir um cargo.
Recentemente, a Oito Vidas entrou com um pedido de representação junto
ao Ministério Público contra a Sepda, justamente, por causa do apoio da
secretaria à ideia sinistra do Jockey Club de, mais uma vez, confinar os gatos
da sua sede num gatil, espécie de campo de concentração de felinos. Cristina
Palmer, vice-presidente da ONG, é advogada com larga experiência na área dos
direitos dos animais.
A Oito Vidas (http://www.oitovidas.org.br/), que cuida de cerca de 800 gatos, hoje tem um ambulatório, por onde
passam aqueles recolhidos para castração ou necessitados de cuidados médicos, e
uma pequena equipe de funcionários e voluntários. Tem também um convênio com a
Faculdade Hélio Alonso na área jurídica, graças ao advogado Marcelo Turrá, que
oferece ajuda gratuita a quem enfrenta problemas na área, como ter algum animal
envenenado por vizinho ou sofrer ameaças de despejo por ter bicho em casa. O
governo, para variar, só faz atrapalhar.
- Imagina qual foi a exigência que me fizeram quando encontrei o
depósito onde afinal fiz o ambulatório? Desratizar a área! Tem cabimento, por
veneno num local cheio de gatos? Além disso, eu só queria saber que rato
suicida ia se aventurar por lá.
*Fonte: Agência O Globo - Rio de Janeiro
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