segunda-feira, julho 9

Defesa animal: é preciso unir forças!



Reforma penal e defesa animal
* Por Vania Maria Tuglio

O tema “defesa animal” suscita, quase inevitavelmente, apaixonados questionamentos, prós e contra, envolvendo as ONGs e as pessoas dedicadas a essa árdua e sofrida causa. Institucionalmente, a defesa animal é realizada (ou deveria ser) pelo sistema jurídico, que deveria reprimir em suas três esferas de atuação (administrativa, civil e penal), as condutas lesivas aos animais e aos seus habitats.

Esse sistema, no entanto, não funciona. Ou funciona muito mal. Basicamente, porque os animais são vistos, fundamentalmente, como fonte de recursos econômicos. As organizações não governamentais, apoiadas pelos defensores independentes da fauna e por meio de passeatas, protestos e tantas outras ações, vêm modificando esse estado de omissão, sensibilizando a sociedade e fazendo com que as instituições passem a considerar o componente animal em suas ações. No Brasil atual, destaca-se a Constituição de 88 como marco divisório.

Ao proibir atos de crueldade contra os animais,  a Carta Magna extrapolou o conceito vigente de que eles seriam meros recursos ambientais, tanto que esse dispositivo constitucional é interpretado, por muitos, como um rompimento com o antropocentrismo. Em decorrência do disposto no § 3º desse mesmo artigo, foi editada a Lei dos Crimes Ambientais (L.9605/98), dedicando um capítulo à fauna e protegendo, de forma ampla, os animais domésticos, domesticados, silvestres, exóticos e em rota migratória.

Foi um avanço importante e poderia ter sido melhor, não fosse a indiferença e os equívocos daqueles que deveriam implementar a norma, assim ocasionando o descrédito da sociedade em relação a ela.

É certo que a brandura das penas é o maior defeito da lei em exame; não obstante, essa brandura era justificável pelo caráter precipuamente educativo da legislação específica, que buscava, em ratio, mais educar que punir os infratores. A não destinação do produto das transações penais para as entidades que abrigam animais, a não observância adequada das normas da parte geral da lei e dos requisitos para recebimento dos benefícios legais, para citar apenas alguns exemplos, geraram a impressão equivocada de que se trata de uma norma inócua.

Esta situação, no entanto, parece estar com seus dias contados. Após aprovação de requerimento do senador Pedro Taques, foi criada e instalada em outubro do ano passado a Comissão de Juristas, destinada a elaborar texto que ampare proposta legislativa de edição de um novo Código Penal. Mais uma vez, a participação de alguns setores da proteção animal foi determinante.

A organização de passeatas, manifestações e colheita de 160 mil assinaturas em Carta Aberta, na qual se pleiteia o não retrocesso na proteção e o agravamento das penas hoje existentes, certamente surtiu efeito. Não fosse o alerta lançado pelo movimento e, certamente, o site do Senado não teria batido o recorde de manifestações populares. As visitas feitas à Comissão, durante os trabalhos de elaboração, foram fundamentais para informar e sensibilizar os juristas, culminando com a entrega, em 27 de junho, de texto de avanço inquestionável.

O Movimento Nacional de Defesa Animal pode considerar-se vitorioso nessa primeira batalha. Outras estão por vir e será necessário que todos os defensores e todas as ONGs de defesa animal superem suas idiossincrasias e diferenças conceituais, fazendo coro para manter e aprimorar esse documento, quando for ao Congresso, sob a forma de Projeto de Lei.

No documento entregue ao presidente do Senado, o tipo do artigo 32 da Lei 9.605/98 sofreu grandes alterações, a começar pela pena, que, atualmente, é de detenção de três meses a um ano, e multa. No documento aprovado, essa mesma pena passará a ser de prisão, de um a quatro anos, e multa. Ela sofrerá aumento de um sexto (1 ano e 2 meses a 4 anos e 8 meses) a um terço (1 ano e 4 meses a 5 anos e 4 meses), se ocorrer lesão grave permanente ou mutilação do animal. Ainda é aumentada de metade (de 1 ano e 6 meses a 6 anos), se ocorrer a morte do animal.

Foram criados três novos tipos penais, tipificando o transporte inadequado, o abandono e a omissão de socorro a animais, todos com pena prevista de prisão, de 1 a 4 anos e multa.  No caso de omissão de socorro, a pena sofrerá aumento, se o crime for cometido por servidor público com atribuição em matéria ambiental.

É possível vislumbrar uma equiparação considerável entre as condutas hoje existentes no Código Penal e aquelas acima noticiadas. Esse “paralelo” é plenamente justificado pela ciência e medicina veterinária, tendo em vista a existência de prova de similitude entre a constituição morfofuncional do animal humano e do animal não humano, especialmente os mamíferos. Além disso, a consideração de que são seres sensíveis e inteligentes, mas que não podem defender-se lhes dá o direito de terem tratamento que a lei hoje confere aos hipossuficientes (criança, idoso, portador de necessidade especial, por exemplo). E essa hipossuficiência, é bom que se lembre, foi gerada por nós, quando os domesticamos, retirando-lhes a capacidade natural de buscar seu alimento na natureza e defender-se. Temos, portanto, a obrigação moral de cuidar bem dos animais domésticos e domesticados. Além disso, a preocupação com a segurança e a integridade das pessoas também pesou nesta verdadeira transformação, uma vez que os estudos demonstram conexão muito estreita entre a violência praticada contra animais e aquela levada a cabo contra crianças, idosos e mulheres.

As alterações foram substancialmente positivas. Apenas a título de exemplificação, pela sistemática atual, se alguém for flagrado praticando maus tratos a um cachorro, será convidado a acompanhar a polícia até o distrito policial; após a lavratura do termo circunstanciado, o infrator será dispensado, desde que se comprometa a comparecer ao Fórum, quando chamado. Se o texto aprovado pela Comissão vier a ser convertido em lei, esse mesmo infrator ficará preso, sendo lavrado contra ele o auto de prisão em flagrante; e ficará preso enquanto a autoridade judicial não se manifestar na comunicação do flagrante, ou enquanto não apreciar eventual pedido de liberdade provisória.

Essas inovações já seriam suficientes para que os defensores da causa animal comemorassem. Mas as diferenças não param aí. Hoje, com a chegada do termo circunstanciado na Promotoria de Justiça – e desde que preenchidos os requisitos legais –, é oferecida proposta de transação penal. No mais das vezes, o pagamento de cesta básica soluciona a questão. A observância da lei 9605/98 , altera o conteúdo da transação, mas não impossibilita o oferecimento do benefício.

Ora, se o texto aprovado pela Comissão for convertido em lei, esse mesmo infrator sofrerá denúncia penal e, se preencher os requisitos legais, será oferecida proposta de suspensão condicional do processo, pelo prazo mínimo de 2 anos. Durante esse período ele deverá comparecer mensalmente ao Fórum, para comprovar suas atividades, não poderá ausentar-se da comarca, nem mudar de endereço sem prévia comunicação ao juiz; também não poderá frequentar lugares de reputação questionável. E, se nesse período cometer outro crime, mesmo que de menor potencialidade ofensiva, será revogada a suspensão.

Os dois processos (o recente e aquele que estava suspenso) passarão a tramitar, com a possibilidade de o denunciado vir a ser condenado em ambos. Dependendo das circunstâncias, poderá também perder a primariedade.  Tudo, sem prejuízo da obrigação de reparar o dano causado.

O avanço é tão grande, que os defensores precisarão manter-se motivados e atentos, porque se esse anteprojeto for encaminhado ao Congresso Nacional, muito trabalho e muitas manifestações populares serão exigidos para sua conversão em lei.

Afinal, a simples elaboração do novo texto já representa uma conquista histórica e fruto do trabalho daqueles que se manifestaram, foram para as ruas, enviaram mensagens, lutaram efetivamente para conseguir instrumento legal que, se efetivado no Congresso e convertido em lei, mudará substancialmente, e para melhor, o quadro hoje existente.

* Promotora de Justiça, diretora de Articulação do Instituto Abolicionista pelos Animais (IAA) e integrante do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Animal
(artigo publicado no site da Agência de Notícias de Direitos Animais-ANDA)


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