Pense duas vezes
* Por Sérgio Greif
É bastante comum que, na busca pela companhia de animais, utilizemos
critérios raciais como determinantes de escolha. Isso não acontece à toa, vamos
à livraria para pesquisar sobre cães e os livros nos dizem qual raça é boa para apartamento, para se ter com crianças, qual raça fornece bons cães de
guarda ... Os pacotes de rações trazem sempre imagens de rottweilers,
labradores, cocker spaniels ou dachshunds. Igualmente, as propagandas de
produtos voltados ao mercado pet utilizam cães de raça. Há, portanto, um apelo
para que "consumamos" cães de raça, apesar do "estigma do cão
vira-lata" estar perdendo força nas últimas décadas.
Consideramos errado julgar as pessoas por sua raça, tampouco não vemos
com bons olhos publicações que tentam associar determinadas raças humanas com
padrões de comportamento. E, mesmo que possamos definir com certa precisão
nossa linhagem ancestral, não é de bom tom sustentarmos isso como indício de
superioridade ou em conotação de pureza. E se isso não é bom ou certo no caso
de seres humanos, também não o é em relação aos cães e outros animais.
Os cães não se reconhecem a si mesmos como pertencentes a raças distintas.
E se não é algo natural, de que forma os critérios raciais surgiram para cães?
Desde a sua domesticação, os cães foram empregados pelo ser humano em diferentes serviços (pastoreio, boieiros, caça de pequenos e grandes animais, caça de aves aquáticas, farejadores, guarda, corrida, etc.). Mesmo sem conhecer os fundamentos da genética, o ser humano sabia, por fatores empíricos, que se cruzasse cães com determinadas características e aptidões teria maior chance de encontrar essas mesmas características em suas proles.
Desde a sua domesticação, os cães foram empregados pelo ser humano em diferentes serviços (pastoreio, boieiros, caça de pequenos e grandes animais, caça de aves aquáticas, farejadores, guarda, corrida, etc.). Mesmo sem conhecer os fundamentos da genética, o ser humano sabia, por fatores empíricos, que se cruzasse cães com determinadas características e aptidões teria maior chance de encontrar essas mesmas características em suas proles.
Esse processo se acentuou ainda mais a partir do surgimento dos Kennel
Clubs, no século XIX. Desde então, cães já não eram mais cruzados para fornecer
animais mais aptos para realizar trabalhos, mas, simplesmente, como hobby, com o intuito de selecionar
os que expressassem determinadas características físicas. Para alcançar as
características desejadas, valia até mesmo apelar para o endocruzamento, ou
seja, o cruzamento entre irmãos, pais e filhos, avôs e netos, etc.
Os Kennel Clubs criaram o sistema de registro de raças, onde das
milhares de linhagens selecionadas ao longo destes 100 mil anos de domesticação
e que persistiram até os dias de hoje, entre 150 e 400 variedades são hoje
reconhecidas como raças (o reconhecimento de uma determinada linhagem como raça
varia de Kennel Club para Kennel Club). Uma pessoa que pegue um livro sobre
raças caninas do mundo inteiro poderá identificar nas fotos determinados
padrões de cães conhecidos e que nem mesmo sabia pertencerem a raças. Isso
porque esse padrão racial somente é reconhecido em determinadas localidades,
por determinados Kennel Clubs. Vira-latas poderiam, portanto, ser incluídos
dentro de determinadas raças, ainda que não pudessem ser considerados puros,
por desconhecermos sua procedência. Apenas esses fatos já servem para
demonstrar que o conceito de raças caninas não é um conceito bem fundamentado.
Consequências do repetido endocruzamento de cães
Embora a seleção artificial de cães remonte ao paleolítico, o conceito de raças caninas, que devem obedecer a determinados padrões, possui menos de 150 anos. Algumas raças atuais remontam a tempos bastante remotos, como é o caso do Cão d´água Português, que, possivelmente, já era criado pelos fenícios, o Afghanhound, que remonta ao século III a.C., do Rottweiler, já utilizado pelos romanos e de tantos outros, no entanto essas raças, como dito, formaram-se a partir de diversos animais distintos que expressavam determinadas aptidões e características. Não havia uma pressão para que os cães não se misturassem com outras linhagens e endocruzamentos praticamente não ocorriam, e quando ocorriam, eram acidentais.
Embora a seleção artificial de cães remonte ao paleolítico, o conceito de raças caninas, que devem obedecer a determinados padrões, possui menos de 150 anos. Algumas raças atuais remontam a tempos bastante remotos, como é o caso do Cão d´água Português, que, possivelmente, já era criado pelos fenícios, o Afghanhound, que remonta ao século III a.C., do Rottweiler, já utilizado pelos romanos e de tantos outros, no entanto essas raças, como dito, formaram-se a partir de diversos animais distintos que expressavam determinadas aptidões e características. Não havia uma pressão para que os cães não se misturassem com outras linhagens e endocruzamentos praticamente não ocorriam, e quando ocorriam, eram acidentais.
Mesmo sem conhecer os mecanismos da genética, o ser humano sempre soube,
de maneira empírica, que o cruzamento entre irmãos ou entre pais e filhos
criava uma prole mais frágil. Hoje, sabemos que isso acontece porque com o
endocruzamento aumenta a possibilidade de que genes raros recessivos se
manifestem no organismo. Quando existe uma variabilidade genética, mesmo com a
presença de genes raros deletérios na população, estes raramente se manifestam,
porque a própria seleção natural cuida de eliminá-los. Mas quando a variabilidade
genética é pequena, e os animais se cruzam apenas entre si, então surgem as
doenças.
Existem mais de 500 doenças genéticas, todas elas associadas à baixa
variabilidade genética existente dentro das raças. Raças como os Poodles
apresentam diversas doenças endócrinas, tumores de mama, hidrocefalia,
epilepsia e outras doenças. Cockers manifestam grande incidência de cataratas,
glaucomas e doenças da retina, doenças dos rins e displasia coxo-femural. Pit
bulls, Rottweilers e Pastores Alemães também apresentam maior incidência de
displasia coxo-femural. Outras doenças características do Pit Bull são a sarna
demodécica, problemas de rompimento do ligamento cruzado e parvovirose. A
parvovirose também incide com maior frequência em Rottweilers, que também
sofrem com maior frequência de problemas relacionados ao complexo
gastroentérico. Pastores Alemães manifestam maior incidência de ataxia,
epilepsia, doença de Von Willebrand (problemas de coagulação), cegueiras
causadas por pannus oftálmico ou queratite superficial crônica. Labradores são
acometidos por cerca de 20 doenças genéticas, entre elas displasia coxo-femoral,
retinal, catarata, ausência de testículo, etc.
Dachshunds apresentam alta incidência de artrite. Além disso, sua coluna
longa ocasiona em maior incidência de problemas de coluna, hérnia de disco,
eles são mais propensos a desenvolver problema de cálculos renais, tumores
mamários e otites. Como os animais com pernas mais curtas são mais valorizados,
essa característica é selecionada pelos criadores, ocasionando em animais com
pernas tão curtas que acabam arrastando a barriga e as orelhas no chão. Entre
os Yorkshires existe maior propensão à endocardiose, hidrocefalia, diversas
afecções dermatológicas, musculoesqueléticas, cânceres de testículo e de hipófise,
colabamento traqueal, hiperadrenocorticismo, nefropatias e afecções urinárias
diversas, várias gastroenteropatias, catarata, atrofia da retina, distrofia da
córnea, conjuntivite. O Pinscher, além da sarna demodécica, com frequência
apresenta epilepsia, problemas cardíacos e problemas de luxação de patela
(rótula), que pode até demandar uma cirurgia.
Além dessas doenças genéticas, há ainda outro problema relacionado ao
cruzamento endogâmico, que é o favorecimento de características estéticas que
resultam em comprometimento da vida do animal. Por exemplo, o padrão de raça
estabelecido para Dachshunds diz que quanto mais baixinho, melhor. Então o
criador busca produzir animais que literalmente se arrastam pelo chão, pois
esses são mais valorizados. É óbvio que para o animal isso resulta em péssimas
condições de vida e muitos desses "salsichinhas" até evitam se
locomover muito. Cães da raça Rhodesian Ridgeback necessitam, por padrões
raciais, apresentar uma faixa saliente no dorso, e para isso que são selecionados.
Essa faixa apenas se forma no animal como consequência de uma espinha bífida,
portanto, selecionar animais para que apresentem essa crista nas costas é
selecionar para que nasçam com esse problema. Essa crista ainda propicia que um
quisto (sino dermoide) se desenvolva entre os tecidos subcutâneos e o tecido
muscular, causando infecção. Nos canis comerciais, quando um Rhodesian Ridgeback
nasce sem a crista, frequentemente ele é morto antes que a noticia se espalhe.
Isso é indício de comprometimento da qualidade do plantel.
Raças como o Sharpei e o Mastiff Napolitano tem como padrão racial a
necessidade de apresentar pregas na pele. E quanto mais pregas melhor. Ocorre
que essas pregas são regiões propensas ao acúmulo de sujeira e umidade e, como
consequência, ao surgimento de dermatite, seborreia e micoses. Além disso,
pregas demais limitam os movimentos do animal, comprometendo também sua visão.
Muitas vezes são necessárias cirurgias para remover pregas da frente dos olhos.
Adicionalmente, Sharpeis apresentam problemas de tireoide, problemas de pele e
pelo e mal funcionamento do fígado e dos rins, o que ocasiona em dificuldade de
biotransformar e eliminar toxinas do organismo. Sharpeis também com frequência
apresentam mordedura prognata, ou seja, os incisivos da arcada inferior se
fecham à frente dos incisivos da arcada superior.
Algumas raças de cães, como os Bulldogs, o Boxer, o Pequinês e o Pug
apresentam mordedura prognata como padrão de sua raça. Em muitos casos o
prognatismo é tão acentuado que, mesmo quando o cão está com a boca fechada,
pode-se ver seus dentes e a língua. No padrão dessas raças também há uma
valorização de animais com cabeça curta, alta e enrugada, focinho curto,
enrugado e voltado para cima, com narinas amplas, o que torna sua respiração
pesada e difícil. Com frequência esses animais apresentam prolapso dos olhos
(olhos saltados da órbita, ou caídos) e pernas tortas. Esses animais têm maior
propensão a apresentarem problemas cardíacos, com grande incidência de
cânceres, problemas articulares e epilepsia.
Portanto, ao buscarmos por animais que obedecem a determinados padrões
raciais, estamos buscando pela expressão de características artificialmente
selecionadas e que, com frequência, representam doenças e má qualidade de vida
para o animal. Ao selecionar animais de acordo com suas características
raciais, agimos como nazistas ou eugenistas, que estabeleceram padrões para a
forma como seres humanos devem ser. Além disso, agindo dessa forma estamos
contribuindo para toda uma cadeia de negócios fundamentada na exploração
animal.
A exploração dos cães de raça
Quem pensa em cães como companheiros, melhores amigos do homem, deve pensar duas vezes antes de comprar um. Cães vendidos em pet shops possuem exatamente os mesmos sentimentos que qualquer outro cão. São dóceis, companheiros e adoram a companhia humana. Porém, junto com tudo isso, ao comprar um cão, o comprador adquire um certificado de linhagem (pedigree) e toda a história de sofrimento que está por trás desses animais. Animais de pet shop podem ser animais fofinhos pelo ponto de vista do comprador, mas pelo ponto de vista do produtor de animais e do vendedor, eles são apenas produtos ou mercadorias.
Quem pensa em cães como companheiros, melhores amigos do homem, deve pensar duas vezes antes de comprar um. Cães vendidos em pet shops possuem exatamente os mesmos sentimentos que qualquer outro cão. São dóceis, companheiros e adoram a companhia humana. Porém, junto com tudo isso, ao comprar um cão, o comprador adquire um certificado de linhagem (pedigree) e toda a história de sofrimento que está por trás desses animais. Animais de pet shop podem ser animais fofinhos pelo ponto de vista do comprador, mas pelo ponto de vista do produtor de animais e do vendedor, eles são apenas produtos ou mercadorias.
A exploração de cães em canis é uma forma de exploração animal tão grave
quanto qualquer outra, E não se trata realmente de fazer uma distinção entre o
"bom" criador e o "mal" criador, ou de criticar o comércio
de fundo de quintal e valorizar o comércio que ocorre sob supervisão de um
Kennel Club ou de alguma entidade de proteção animal. A criação de cães de raça
é em si um erro, porque ela produz animais que, em verdade, só existem para
atender à futilidade e aos padrões de estética que nós estipulamos. Seres
humanos que de fato gostam de cães não fazem distinção entre cães de raça e cães
sem raça definida.
Quem deseja um amigo de verdade . . .
Uma pessoa que realmente deseja ter um cão como amigo, e não como um produto, uma mercadoria, não faz distinção entre um cão de raça e um cão sem raça definida. Os cães são sinceros em sua amizade para conosco, eles não fazem julgamentos se somos brancos ou negros, altos ou baixos, milionários ou mendigos, perfeitos ou deficientes, cabeludos ou carecas . . . eles nos aceitam como somos porque seu amor é desinteressado.
Uma pessoa que realmente deseja ter um cão como amigo, e não como um produto, uma mercadoria, não faz distinção entre um cão de raça e um cão sem raça definida. Os cães são sinceros em sua amizade para conosco, eles não fazem julgamentos se somos brancos ou negros, altos ou baixos, milionários ou mendigos, perfeitos ou deficientes, cabeludos ou carecas . . . eles nos aceitam como somos porque seu amor é desinteressado.
*Biólogo, Mestre em Alimentos e Nutrição com tese em Nutrição
Vegetariana e ativista pelos Direitos Animais
Fonte: SEDA
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