sexta-feira, fevereiro 24

"A HUMANIDADE NÃO É CONFIÁVEL"

*O olhar do touro

<br /><b>Crédito: </b> ARTE JOÃO LUIS XAVIER

Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER
-Eh, touro - provocava uma voz feminina quando o animal, arfando, parecia contemplar a plateia em convulsão.

O bicho estava a não menos de 5 minutos da sua morte. Quinze minutos antes, entrara na arena circular da Plaza de Toros de Santa Maria, no centro de Bogotá, como uma fera negra bela e exuberante. Explosão de vida.

Foi no último domingo, 19 de fevereiro. Depois de conhecer a linda cidade litorânea de Cartagena de Índias e de tomar muitos banhos nas águas caribenhas da ilha colombiana de San Andrés - a mil quilômetros de Bogotá, muito mais próximo da Nicarágua -, fomos ver uma tourada. Minhas leituras de Ernest Hemingway e minha curiosidade de escritor e jornalista me empurraram para o local. Entrei lá tentando pensar no aspecto poético do jogo cantado por artistas como Garcia Lorca ou louvado por pintores como Pablo Picasso. Vi só a face da barbárie.

Dizem os organizadores, para se defender dos que pregam o fim das touradas, inclusive o prefeito de Bogotá, que se trata de dar uma morte honrosa a um guerreiro, o touro. E que muito mais cruel é morrer nos matadouros industriais. Muito lero, uma baita racionalização. Na prática, um animal poderoso, mas encurralado, sem ponto de fuga, saltando do corredor da morte para o abate sob tortura diante dos aplausos frenéticos de homens, mulheres, velhos, jovens, ricos, pobres, colombianos e estrangeiros. Lá estávamos nós, constrangidos. Lá estava também, em férias, o nosso ministro da Educação, Aloísio Mercadante, com a família.

O touro é provocado pelo matador e seus assistentes, auxiliares poltrões que sempre podem se esconder atrás de barreiras providenciais. O animal é ferido no dorso com uma lança pelo "picador", que entra numa montaria com a proteção de uma saia medieval e aceita passivamente as investidas da vítima ferida. Depois, baixando mais a cabeça por causa dos golpes do "picador", é torturado pelos bandarilheiros, que lhe enterram os chamados ferros, farpas, lâminas de cinco a sete centímetros com arpões na ponta e hastes coloridas. O matador exibe sua arte. Dança com o touro. A massa grita "olé". Por fim, o toureiro enfia a sua espada no animal, cuja respiração se acelera pavorosamente. Os assistentes cercam e estimulam o bicho, que cai e recebe a punhalada final. Grotesco.

O matador, durante a luta, encontra tempo para virar as costas e caminhar até o público para vangloriar-se, receber rosas, cumprimentar as autoridades. Ao final, é festejado como um herói e pode sair nos ombros do público. A tourada é uma cerimônia de abate com direito a espetáculo, aspectos "lúdicos" e histeria coletiva. Vibra-se com o sofrimento do animal e comemora-se a sua morte. Animais comem animais. Sou carnívoro. Não pretendo ser vegetariano. Mas não sou favorável à tortura. Já tinha visto touradas em filmes e na televisão. Li muito sobre touradas. Estar no local da tortura e execução é totalmente diferente. Senti nojo e certa revolta. É uma luta desigual. As chances do animal são quase nulas. O toureiro é um idiota que se acha superior. Saí da Plaza com aquela velha certeza: a humanidade não é confiável.

Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br
*Publicado no jornal CORREIO DO POVO, de Porto Alegre

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