Ética e Pitbulls
*Por Sônia T. Felipe
Gosto de comparar e distinguir as coisas, para melhor poder pensar sobre elas. Um bom hábito, necessário à atividade filosófica. Imprescindível na ética, especialmente quando tratamos de nossos deveres para com os não-humanos.
Sempre intrigou-me o fato de que uma porcentagem assombrosa de ataques violentos de cães contra humanos, mesmo os da família que os comprou ou adotou, da ordem de 71%, segundo a OMS, partia de cães da raça pit bull, seguida de 13% de ataques realizados por rotweillers, ficando os 16% restantes distribuídos entre todas as demais raças de cães. Essa estatística choca, e por isso precisa ser desvelada. O que acontece aos pitbulls, que não acontece aos outros cães?
Então, criando coragem, comecei a falar disso com as pessoas sérias ligadas à defesa dos direitos animais. Os números me causavam temor. Eu tendia a aceitar que essa raça de cães tem algo especial em sua genética, algo ameaçador, que pode despertar a qualquer momento, sob os mais variados pretextos. Finalmente, após ler os livros do Cezar Milan, sem que tenha encontrado lá uma explicação que me desse alguma luz sobre a “agressividade” dos pitbulls, devo a Maurício Varallo (Olhar Animal e Pensata Animal), a explicação que conseguiu acalmar-me e me permite agora escrever este texto: aprendi, com ele, que os pitbulls têm, simplesmente, uma força descomunal na mandíbula, só isso.
Enquanto a mordida de um cão sem qualquer grife, ou mesmo de alguns cães de certas grifes, produz escoriações leves, a de um pitbull destroça o membro da vítima. Por ódio? Não. O cérebro e os genes desses animais não são “do mal”. Mas, a força mandibular deles é mesmo extraordinária. Essa é sua arma. Foram selecionados geneticamente, por isto: sua força.
O alcance do que vou propor a seguir não visa proteger os interesses dos humanos, sejam lá quais forem. Visa defender a vida dos pitbulls. Uma defesa baseada estritamente na virada prática que podemos dar ao projeto de extinção da raça, que está em andamento em nosso país. Voltemos, pois, à reflexão.
Bem, os carros nos quais trafegamos por aí, também têm uma força descomunal em suas “mandíbulas”: podem estraçalhar o corpo de qualquer animal, humano ou não, em um segundo. Os carros não são movidos a ódio. Pitbulls também não. Não encaminhamos projetos de lei para extinguir o uso de automóveis, mesmo sendo eles instrumentos que tiram a vida de mais de 50 mil brasileira(o)s por ano, deixando quase meio milhão de outros gravemente sequelados para o resto de suas vidas.
Sigamos com a analogia. A força é desencadeada nos carros pela propulsão que o combustível queimado gera no motor. Nos cães, o gatilho que dispara o impulso motor é dado por estímulos ambientais e interações sociais desagradáveis e dolorosas, para o animal sensível. Entretanto, conseguimos contornar a ameaça que os carros representam à integridade física de quem se move nas ruas, proibindo crianças, adolescentes e até mesmo adultos com certas limitações físicas, emocionais ou mentais, de conduzirem automóveis. Em certos casos, os humanos estão proibidos de andarem nas ruas sem a supervisão e vigilância de um adulto responsável.
Analogamente ao que fazemos em relação aos carros e aos humanos que não respondem por seus atos, em vez de tirar a vida dos cães, que não têm culpa alguma da força descomunal de suas mandíbulas, que tal limitar o direito de pessoas inaptas à convivência com esses animais, de escolherem-nos para estima?
Assim, todo humano que queira ter um pitbull em sua companhia, para estima, não para usar como arma de defesa da casa ou de si mesmo e familiares, deve passar por uma “triagem”, antes de ver seu desejo realizado. Não temos que ficar semanas estudando, frequentando aulas de treinamento, e nos submetendo a uma bateria de testes, para receber a habilitação que nos autoriza a guiar uma máquina com força descomunal? Por que, para “guiar” um cão com essa força extraordinária para os padrões caninos, qualquer humano julga-se suficientemente capacitado, “por natureza”?
Obviamente, se levarmos a questão para esse lado, tem muita gente que não vai querer se submeter à avaliação para conferir se tem, ou não, capacidade para liderar esses cães. Sim, porque trata-se de exercer a liderança alfa sobre a mente deles. O espírito dos cães evoluiu para isso. Humanos sem liderança sobre si mesmos gostam muito de comprar filhotes de pitbull e rotweiller. Sentem-se “poderosos” quando “portam” esses cães pela rua! Mentes medrosas não podem guiar pitbulls nem rotweillers, pois passam para o animal essa emoção e a deficiência que ela expressa. O animal reagirá como um amplificador desse medo.
O mercado capitalista dispõem de quinquilharias suficientes para entretenimento das pessoas, e de dispositivos de segurança pessoal e doméstica para sua proteção. A lei deve proibir, finalmente, o uso de animais como armas de defesa pessoal e patrimonial. Deixe os animais fortes viverem em paz. Se não convocarmos seu espírito para agredir, sua força descomunal não será usada compulsivamente. O que não podemos fazer é dar duas mensagens a esses animais: “use sua força descomunal para morder pessoas”, e, “não use sua força descomunal para morder pessoas”. Essa esquizofrenia transtorna a mente do animal. Na confusão, ele ataca alguém que, na opinião de quem o escolheu para compor a família (na condição de cão de guarda), era “do bem”. Alguém consegue treinar um cão para que ele distinga quem é do bem e quem é do mal? Nem nós o sabemos, quando nos aproximamos de alguém. E um dia, alguém que sempre nos pareceu do bem, pode emitir descargas ruins que nos fazem sentir como se fosse do mal. Por que alguém da família não causaria essa confusão no animal de estimação?
Bem, se não tivermos mais direito de comprar um animal, ou mesmo de adotar um, para usar como arma de defesa patrimonial ou guarda pessoal, esses animais não terão mais os estímulos que os levam ao ataque. Infelizmente, enquanto houver pessoas pensando em ter um pitbull para defenderem-se de assaltos, esses animais continuarão a ser vistos apenas como uma arma. Justamente o que pensarmos deles será o que convidaremos seu espírito a performar. Por isso, a mente do animal que convive com outros tem um papel fundamental no modo como esses outros reagem. Escrevi sobre isso nas duas colunas anteriores.
Conduzidos por motoristas sensatos e respeitados por pedestres atentos, os carros são algo que trazem conforto para todos. Guiados por humanos sensatos e preparados, pitbulls podem viver longamente e em paz. Basta inquirir as pessoas que têm em sua companhia cães dessa raça. São milhares pelo mundo afora. Precisamos abolir o conceito violento com o qual construímos o estatuto moral desses cães, não os cães. Fizemos isso em relação aos adolescentes e crianças violentas, não? Ou será que logo virá algum deputado sugerindo que para acabar com a violência de crianças e adolescentes deveremos exterminá-los também, porque a violência está “em seus genes”, ou, porque, “há quem nasça mau”!?
Aliás, não é raro eu ler esse tipo de afirmação nos comentários de notícias sobre violência contra animais não-humanos. Através desses comentários dos internautas chego a conhecer melhor o espírito brasileiro: bem agressivo, quando se trata de propor uma solução para a somatofobia, a violência humana dirigida contra o corpo de quem quer que seja. Como fica agora a posição desses internautas que pedem prisão e morte de quem maltrata e mata animais, confrontados com o projeto de lei que pede a morte dos pitbulls? Temos insistido que para ser ético temos que adotar um princípio de mão-dupla, sem discriminação, não importa se nossos interesses e preferências pessoais venham a ser enquadrados por esse princípio, ou não.
Agora é a vez de mantermos coerência ética: em vez de pedirmos a extinção do animal que tem uma força descomunal, pedimos que o animal possa viver em paz, mas, somente na companhia de humanos capazes de interagir com esse animal tão forte, sem convocá-lo jamais a empregar sua força. Há certos interesses humanos que precisam ser cerceados. O de ter a posse de um animal para usá-lo como arma de defesa ou de ataque, é um deles.
*Colunista da ANDA, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral, com pós-doutorado em Bioética-Ética Animal
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